A Árvore da Mentira
— Dá carona prum véio requeiro?
— Sobe, seu Pedro !
Após horas de espera sob o sol de verão e engolindo poeira de diversos veículos que passaram sem parar, Pedro Araújo consegue uma carona. Estava na periferia de Marabá e queria voltar antes do anoitecer ao seu barraco em Serra Pelada. Com presteza surpreendente para os seus 70 anos, entra e assenta-se na cabine da camioneta.
— Poeirão, hein, cumpadre?
— Poeira e buraco. Deus que me livre. A gente nem sabe mais onde está a estrada. Veio fazer compra em Marabá?
— Qual o quê! Vim receber uma dívida da minha tralha de garimpo, mas o Zé Curinga sumiu. Ninguém dá notícia do home. Tou dando por perdido. Aqui tá tudo assim: tamos perdendo tudo que ganhamos nos tempo do garimpo.
— É verdade. Eu também tou tendo um prejuízo danado. Não tem mais frete e rodo com a camioneta vazia a maior parte do tempo.
Silêncio. Ambos olham pelas janelas da cabine. O motorista perscruta com atenção o caminho à frente: uma camada de meio metro de poeira fina esconde os buracos. O veículo bate sobre pedras escondidas pelo talco vermelho. O caroneiro olha para os lados, observa os campos adjacentes com alguns pés de castanha ainda em pé. Poucas rezes pastam.
Lembranças. Quando chegou , há mais de vinte anos, nos meados dos anos setenta, aquilo ali era mata cerrada. A estrada era apenas uma senda sob a copa dos altos jequitibás, perobas e dezenas de outras árvores, todas madeira-de-lei. Bichos por todos os lados: cobras, macacos, onças, tamanduás, não dava nem pra contar. Perigos sem fim. Se era preciso ter coragem para fazer a viagem, mais ainda era preciso ser corajoso para enfrentar o garimpo.
Ele foi um dos primeiros a chegar. Conseguiu marcar um bom lote nos terrenos do garimpo, de fácil acesso, perto da água. Assistiu à chegada dos milhares de aventureiros que vinham de todo o Brasil. Vinha gente até das Guianas, da Colômbia, do Peru, da Bolívia. Alguns gringos loiros da Europa estiveram pelo garimpo. O trabalho era duro. Ele conseguira , em certa ocasião, empregar até dez “formigas”, homens que traziam a terra do lote para o local de lavar a terra e batear o cascalho. Ele e o sócio Miguel Cavalo bateavam, serviço que exigia atenção e que lhe dava tremendas dores nas costas.
O buraco de Serra Pelada já estava bem grande e fundo quando chegou o Major Curió para pôr um pouco de ordem na situação. Nas terras altas, não muito longe do garimpo, a vila crescia dia a dia. No começo só tinha homens, as mulheres e crianças estavam proibidas – uma proibição silenciosa, não escrita .
Na beira da estrada que vai de Marabá à mina de Carajás, uma outra vila estava sendo erigida. Começou com barracos de mulheres da vida, depois foram construídas as biroscas, as lojinhas, e foi crescendo, crescendo, até virar uma cidade. Foi quando o Major chegou para administrar, juntamente com o favelão próximo do garimpo.
— Tenho de fazer uma parada no Eldorado. — Informou o motorista. — Tenho de entregar algumas mercadorias.
Pedro voltou à realidade. Ajudou na descarga de sacos e engradados e espichou as pernas. De novo na camioneta, o dia vira noite, a conversa encurta a viagem.
— Pára perto da árvore da mentira. É onde moro.
Os jogadores se reuniam debaixo de qualquer sombra para as partidas de dominó. Infindáveis partidas. São aposentados e desempregados que passam os dias matando o tempo. Vivem de relembrar o passado recente, quando eram os homens de ouro. Contavam e recontavam os causos do garimpo, de suas vidas, agregadas para sempre ao garimpo da Serra Pelada.
— Ouvi dizer que o Major vai voltar.
— Se ele voltar, vai ser bom. Foi o único homem que colocou ordem por aqui e protegeu os garimpeiros contra a ganância dos comerciantes de ouro.
— Mas, vai voltar como?
— Parece que vai ser candidato a prefeito de Curionópolis. Ouvi esse boato em Paraupebas.
Os requeiros (assim são conhecidos os trabalhadores dos restos do garimpo) sentem saudades dos tempos em que o garimpo foi administrado pelo Major. Nomeado como interventor, conseguiu impor alguma ordem, uma organização àqueles aglomerados de gente: homens empenhados em cavoucar, cavoucar, batear e batear. No pó e na lama, conforme o tipo do serviço. Quando chegou ao local, mais de 80.000 homens estavam cavando no fundo da enorme cratera, ou lavando a terra na superfície. Outras 20.000 pessoas habitavam a vila à beira da estrada.
— O ouro bateado era tanto que os homens do governo federal imaginavam ser suficiente para pagar a dívida externa do Brasil — declarou certa vez o próprio Major Curió. — Que grande ilusão!
A cratera formada pela atividade intensa dos garimpeiros afundava-se terra abaixo por mais de duzentos metros. Foi, na ocasião, o maior garimpo em todo o mundo. A movimentação dos garimpeiros, descendo e subindo pelas escadas, entrando e saindo da imensa cratera, se assemelhava a um formigueiro a céu aberto: cada homem carregando, na cabeça ou nos ombros, uma saca com a terra impregnada do metal precioso.
— Cadê o Jorge Calango? Mané Biscate pergunta aos parceiros e à assistência, um grupo de cinco ou seis que sapeiam o jogo.
— Tá na beira da cava. Ele e mais três requeiros tão lavando a escória.
— Num tem mais ouro ali, não.
— Sempre se consegue algumas gramas. Mas num vale a pena.
De fato, Jorge e seus dois companheiros conseguem ainda tirar alguns gramas de ouro dos montes de terra já bateados. Na euforia dos bons tempos, os garimpeiros bateavam com pressa e algum ouro foi jogado fora. Os três requeiros lavam de novo a terra já garimpada, um trabalho exaustivo.
— Semana passada conseguiram trinta gramas.
— Não dá nem pra pagar o mercúrio.
— A serra Pelada acabou. — lamentava-se dona Terezinha. A velha também fora pioneira. Chegara em 1985 e foi a primeira a entrar no garimpo. Viera com a filha e o genro. Cuidava dos netos para que Estevão e Celeste garimpassem, contaminados pela febre do ouro. — Hoje a cidade está cheia mas é de fantasmas, alma penada de muita gente que morreu por aqui. O que mais se vê são casas fechadas, máquinas quebradas, abandonadas. O mercúrio envenenou a água. Na beira da estrada a gente só vê carros e caminhões enferrujando, apodrecendo.
Ela fala do que sabe. Foi enfermeira em hospital em Salvador e vê, com desgosto, que as doenças estão por toda parte.
— Tem doente de malária, de dengue, tuberculose, câncer de pulmão, de pele, tem leprosos e aidéticos. A Santa Casa está quase fechada, não tem remédio pra nada. Dos leprosos quem cuida é o Jacaré, que de vez em quando consegue medicamentos diretamente de Brasília. Ele conhece o Major...
Em Brasília, o Major Curió enfrenta um dilema: aceitar ou não o convite do cacique político do Pará, para candidatar-se à prefeitura de Curionópolis.
— Meu tempo de garimpo já passou. — Brinca o ex-deputado federal. — Não tenho mais o que fazer em Curionópolis. — Suas palavras, entretanto, são apenas retórica política. Claro que quer voltar ao local que tem no nome a homenagem que lhe é prestada.
— Acho que sou o único homem que é candidato em uma cidade que tem o seu próprio nome. – Continua sorrindo. — Mas, falando sério, se for eleito, vou ressuscitar o garimpo de Serra Pelada. Ali tem um potencial aurífero de 500 toneladas, que pertencem aos garimpeiros. Nos rejeitos em volta da cava tem mais de 27 toneladas. Na lama do fundo da cava tem 6 toneladas, tudo de fácil extração.
— É, o Major tem razão. Se a gente tiver uma ajuda de fora, ainda vamos tirar muito ouro da Serra Pelada. — Afirma com autoridade de pioneiro o requeiro Pedro Araújo. Sentado ao pé de uma enorme árvore cuja copa proporciona fresca sombra a seu barraco, e as raízes adentram-se pelo chão batido da meia-água que é a cozinha, ele fala devagar mas com esperança. — Tá vendo esta peroba aqui? — Bate com o punho no tronco. — Eu mesmo plantei, há mais de vinte anos. Olha só o porte da copada!
Ao seu redor estão diversos amigos que se reúnem todas as tardes, para rememorarem os bons anos. Contam causos que vão se transformando em lendas, à medida que passam de boca em boca. Exagerados, muitas vezes são tomados como mentiras. Daí que a arvore é conhecida como “Árvore da Mentira”. Causos como o de Tonhão Cacau, contada pelo próprio Pedro.
— Pois é, o Tonhão ficou biruta com tanto dinheiro, fez coisas do arco-da-velha. Perdeu tudo. Até a razão. Endoidou de vez. Amarrou um monte de notas na ponta dum cordão e foi puxando pela rua. O pacote de notas já sumiu, hoje arrasta só o barbante...
Para confirmar a estranha história, aparece no outro lado da rua o maluco: esmolambado, sujo e com ar de débil mental, puxa uma cordinha que se arrasta pelo chão vermelho.
— Aí, Tonhão, que cê tá puxando?
A voz enrolada sai de uma boca desdentada, acompanhada de sorriso demente.
— A vida inteira corri atrás do dinheiro. Agora, é o dinheiro que corre atrás de mim...
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ANTONIO ROQUE GOBBO =S.Sebastião do Paraíso–06.01.2001
Conto # 66 da Série Milistórias, publicado em "O Fantasma dos Mares"
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